19 abril 2013

CINEMA E GASTRONOMIA

Nota: versão provisória desta conferência, que será complementada,
logo que possível, com as ligações para todos os filmes indicados.
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À Confraria da Lampreia de Penacova, no seu X Capítulo, ofereço este prato mal cozinhado, que serve como receita para o modesto aperitivo que vou servir e que só pode ser salvo com o extraordinário banquete d’A Festa de Babette.

Com amizade
Penacova, 6 de Abril de 2013

Luís Reis Torgal [i] , da Confraria Informal  “A Ver e a Beber Vamos”

CINEMA E GASTRONOMIA

É um equívoco eu vir aqui proferir uma conferência (ou uma “oração de sapiência”, como honrosamente lhe chamou o programa) sobre este tema, não sendo gastrónomo ou “gastrósofo” (e sim apenas apreciador de boa comida e de boa bebida, embora em certas circunstâncias e em quantidade cada vez menor, o que abona, de resto, em favor da verdadeira gastronomia) e não sendo especialista em cinema (sou apenas um historiador que analisou o “cinema sob o olhar de Salazar” e que, quando muito, se pode chamar um “cinéfilo”, termo de que Alves Costa, um dos iniciadores do ensaísmo cinematográfico em Portugal, parece não ter gostado, por se ter tornado um termo demasiado corrente).
 
Falar deste tema, em sentido lato, é também um equívoco, pois consiste afinal em falar de quase todo o cinema, dado que não há praticamente nenhum filme onde não haja uma cena passada à mesa. O comer e o beber fazem parte integrante da vida, como o amor, o prazer, o sofrimento ou a morte.

Se olharmos para o cinema português de anos idos, todos nos lembramos das pitorescas cenas passadas à mesa nas pensões familiares lisboetas ou nas casas de família, como sucede, por exemplo, em O Pai Tirano (1941), de António Lopes Ribeiro. Por vezes essas cenas têm algo de caricato e de humorístico, como acontece, no mesmo filme, com o caso, reproduzido recentemente num anúncio da TV, da criada Teresa (Teresa Gomes) que substituía um bolinho de bacalhau e vários outros petiscos, que não havia no bar, por um copinho de vinho branco (ou um copinho de aguardente? — já não me lembro bem).

Cenas excelentes passadas em restaurantes ou em festas de sociedade ou em refeições íntimas encontramo-las nós em Manoel de Oliveira (por exemplo, em Vale Abraão, 1993, em Party, 1996, ou em Belle Toujours, 2006). Mas atinge foros de ironia sarcástica no filme Tráfico. Uma comédia Portuguesa (1998), de João  Botelho, em que os vigaristas penetram em dada altura numa “sardinhada de sociedade”, à  beira de uma piscina, onde os convivas, vestidos de cerimónia e servidos por “criados” trajados a rigor, comem duas ou três sardinhas com luvas brancas, que lhe são distribuídas à entrada. Ou então na ironia crítica, paradoxal e desconcertante de João César Monteiro, das Bodas de Deus (1999), um dos filmes da trilogia de João de Deus, em que este, após salvar de morrer afogada uma jovem (Joana), que tentara suicidar-se, e de ter recebido de um anjo (interpretado por Luís Miguel Cintra), vestido de oficial da marinha, uma mala cheia de dinheiro, almoça com a madre-superiora, no convento onde entregara a jovem. Aí surge, inesperadamente, o gosto pela fartura e a austeridade de João de Deus, que enche o prato de um cozido à portuguesa, de “comer e chorar por mais”, o qual acaba por ser levantado da mesa sem nada ter comido, ao mesmo tempo que a madre-superiora comia alguma coisa e depois fumava cigarrilhas longas, ambos vituperando os fascistas, com uma blasfémia (a freira) ou com uma ladainha pornográfica (João de Deus).

Notáveis são também as comezainas dos filmes do realizador e músico sérvio Emir Kusturica: a boda de casamento no subterrâneo, onde se escondiam da guerra sem saber que a guerra tinha terminado, em Underground (1995), ou nos encontros de convívio e de luta de famílias, em Gato Preto, Gato Branco (1998), que representam afinal as polémicas constantes dos países balcânicos. Ou então as refeições nojentas em que cada um quer comer mais ou até matar o outro, de Ettore Scola, em Feios, Porcos e Maus (1976). Mas Ettore Scola fez mesmo um filme sobre um jantar (La Cena, 1998), passado num restaurante, onde os dramas de cozinheiros, criados e clientes representam afinal os dramas do dia-a-dia. Aqui a comida e a bebida, ou o acto de comer e de beber, ou de cozinhar ou de servir à mesa, mas sobretudo o ambiente que os rodeia, são apresentados como uma grande metáfora. Tal como é uma alegoria, neste caso contra as prepotências, a peça de Arnold Wesker, A Cozinha, The Kitchen (1957), que representa a exploração do operário na sociedade capitalista, peça proibida em Portugal no Salazarismo e só encenada em 1971, tendo sido de novo levada ao palco recentemente, por Carlos Avilez.

Até certo ponto será também uma metáfora a história de uma comunidade de pobres emigrantes do norte de África em França (Sète) que querem abrir um restaurante num barco, mas tudo lhes corre mal, entre vários dramas familiares. Trata-se do filme francês do tunisino Abdel Kachiche, La Graine et le Mulet, apresentado em Portugal com o nome de O segredo de um Cuscuz (2007).

Grande jogo de representações é o polémico filme do polémico realizador Marco Ferreri, A Grande Farra (1973) — é afinal o olhar amargo sobre a sociedade capitalista e de abundância, que se suicida num acto autofágico (comendo grandes iguarias), com a presença não de marginais prostitutas, mas de uma professora de crianças, representante do stablichment, a qual, com os seus alunos, visitava a casa de Balzac, situada ao lado do palacete onde toda a cena se desenvolve. De algum modo como Os Canibais (1988), filme de Manoel de Oliveira, apresentado em tom de ópera, com música de João Peres, baseado no conto com o mesmo nome (1868) de um autor maldito do século XIX, Álvaro Carvalhais, que põe a nu a imoralidade da sociedade burguesa, a qual come os seus próprios filhos. Algo de semelhante surge no filme Delikatessen (1991), de Jean-Pierre Jeunet, em que, numa sociedade surrealista, onde falta comida e todos se querem comer, a carne humana é apresentada como um excelente ingrediente de óptimos petiscos.

Mas este canibalismo — recorde-se ainda Hannibal (2001), interpretado por Anthony Hopkins, e realizado por Ridley Scott, thriller que vem na sequência do mais conhecido e, a meu ver, de menor qualidade, O Silêncio dos Inocentes — ou o suicídio pela comida são tudo o que há de mais oposto à gastronomia e peço, por isso, desculpa por ter referido semelhantes filmes de maior ou menor interesse cinematográfico, do ponto de vista estético, dramático e social.

Nem nesse sentido se pode colocar a obra didáctica e positiva, filme para crianças e adultos, quase em desenhos animados, de Tim Burton, com o seu actor preferido, Johnny Depp, Charlie e a Fábrica de Chocolates (2005). Nem mesmo Ratatui ou Ratatouille (2007), nome da principal figura e de um prato campestre da Provença, das americanas Produções Pixar e realizado por Brad Bird — delicioso filme de animação sobre as aventuras de um rato cozinheiro em Paris.

Na verdade, já se aproxima mais da gastronomia outro filme americano, que vai olhando para a gastronomia francesa (como é comum, por ser, talvez injustamente, a mais conhecida e, afinal, a mais elaborada), Julia e Julie (2009), de Nora Ephron, baseado na autobiografia de Júlia Child (My life in France), interpretada por Meryl Streep, que conta a história de uma jovem desempregada, Julie, que se propôs cozinhar centenas de receitas do livro Mastering the Art of French Cooking, registando as suas impressões sobre o que vai cozinhando num blogue de grande sucesso.

Também não será obra ligada com exactidão à gastronomia, ou, melhor, à enologia, o filme Sideways (USA, 2004), de Alexander Payne, história de dois amigos que saem em despedida de solteiro de um deles, em busca das caves de vinho da Califórnia. Pretende-se criticar nele o pretensiosismo do gosto pelo vinho nos Estados Unidos. No final das várias peripécias humorísticas e dramáticas dos dois amigos, um deles, divorciado e com problemas existenciais, acaba, tristemente, a beber um vinho que se pretendia de qualidade excepcional, num restaurante fast-food, em copo de plástico. A atracção americana pelo vinho é um facto interessante, de tal modo que levou à produção de algumas obras curiosas, como alguns livros de jornalistas e de enólogos, mesmo alguns sobre a história de França na Segunda Grande Guerra (Don e Petie Kladstrup, Vinho e Guerra. Os franceses, os nazistas e a batalha pelo maior tesouro da França. Edição brasileira. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002). No domínio do documentário, recorde-se o filme premiado Mondovino (2004), do americano Jonathan Nossiter, que é uma crítica à globalização e ao emprego de técnicas modernas em função de uma “estandardização”, um paladar homogéneo, ao gosto do público, em desfavor do terroir e da utilização original das pipas de carvalho. Teria esse tipo de documentários críticos sobre a sociedade actual, em crise de valores, grande sucesso, entre cinéfilos e não só, como provam os filmes sobre outros temas de Michael Moore e o recente Inside Job, A Verdade da Crise (2010), de Charles H. Ferguson.

Verdadeiramente, um filme que aborda a gastronomia, ou a gastrosofia, ou a gastrologia, ou a gastrofilia — não sei qual o termo mais adequado —, não será ainda a notável fita mexicano Como Água para Chocolate (1992), de Alfonso Arau, com base no livro de Laura Esquível. Obra de um realismo mágico, entre o sobrenatural e o real, passa-se durante a guerra civil e tem como pretexto a cozinha e as suas receitas (cada capítulo do livro começa por uma), onde Tita — marcada para ser a solteira da família — se fixa num amor fatal por Pedro, começando por atraí-lo pela boa comida.

É interessante como o chocolate tem funcionado como motivação de filmes e de livros, mesmo de uma obra que só de forma muita indirecta poderia trazer ao de leve referências gastronómicas (o caso de um gelado), Morango e Chocolate (1994), o filme cubano/mexicano/espanhol, de Tomás Gutierrez Alea e Juan Carlos Tabió, de considerações críticas sobre a realidade cubana e uma apologia da tolerância, marcada pela amizade entre um professor e um intelectual homossexual. E é sobre a arte de fazer chocolate que versa um filme que já poderei apelidar, esse sim, de gastronómico — Chocolate (2000). Inglês, mas dirigido pelo sueco Lars Hallström, é revelador de uma temática muito sugestiva abordada anos antes num filme de culto (pelo menos para mim) a que me vou especialmente referir — a relação entre o prazer e a vida, uma relação que demonstra que o prazer é capaz de romper preconceitos, neste caso os preconceitos da nobreza e do clero, num pequeno povoado francês. É a história de Vianne Rocher (Juliette Binoche), e da sua filha, que, com a sua chocolateria, vai conquistando a alma das gentes simples e o amor de um cigano, sendo inicialmente perseguida pelo conde, dominador das gentes da aldeia, e pelo jovem padre, seu apaniguado. Considerado um filme de grande nível cinematográfico, teve vários óscares e globos de ouro.
 
Mas autenticamente obra de eleição e gastronómica por excelência é o filme dinamarquês, considerado então o melhor filme estrangeiro do Festival de Cannes, A Festa de Babette (1987). Dirigido por Gabriel Axel, teve como base o romance de Karen Blixen (que inspirou também o filme África Minha), conhecida igualmente pelo pseudónimo de Isak Dinesen. Babette, que fugira das convulsões da Comuna de Paris (1871) e que (segundo se vem a saber no fim) fora chef de cuisine do Café Anglais, vai para uma pequena aldeia nórdica, onde é albergada por duas mulheres, filhas do pastor de uma comunidade presbiteriana muito austera.
Só um verdadeiro dinner français que se propõe cozinhar e servir, por ter ganho a lotaria e em homenagem póstuma ao pastor, quando ele faria 100 anos, traz verdadeira felicidade à comunidade. É uma união entre o prazer e a vida, ou a ideia que não há espiritualidade sem o prazer, ou que o artista nunca é pobre e pode sempre dar algo de si aos outros. Mesmo que seja uma cozinheira, uma cozinheira de primeira água, que fizera feliz e voltara a fazer feliz um militar, o único dos convivas que sabia reconhecer os prazeres da mesa, mas que também conhecera o amor, nunca concretizado mas sempre vivo, por uma das anfitriãs. Os outros passaram a apreciar o gosto da boa comida e só então terão percebido o sentido da felicidade e da solidariedade. O Espírito não pode existir sem a Matéria, desde que esta seja um “Matéria espiritual”, um objecto de arte.
 

Deste modo, pode dizer-se que nada há como ver o banquete da Festa de Babette para se entender o sentido de uma confraria gastronómica, que deve ser considerada no seu sentido preciso e literal — uma confraria, um conjunto de “irmãos” que se juntam para comer e beber, como nas antigas confrarias medievais, junção entre a vida e a morte, onde era obrigatório pelo menos uma refeição conjunta por ano, um convivium, em que para representar e se afirmar essa relação vital se passava um copo de mão em mão. Assim se ligavam espiritualmente todos os confrades e aqueles que já haviam falecido.

É este filme ou, melhor, o seu final, a notável e deliciosa cena do banquete, nunca mais esquecida depois de a ver, que ofereço à Confraria da Lampreia de Penacova, no seu X Capítulo.


[i] Professor Catedrático aposentado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Licenciou-se aqui com uma tese sobre o Tradicionalismo e a Contra-Revolução, publicada em 1973. Doutorou-se em 1978 com a dissertação Ideologia política e teoria de Estado na Restauração, publicada em 1981-1982. Depois dessa passagem pelo estudo da Época Moderna, dedicou-se ao estudo da História da História, do Estado Novo (foi publicada nesta colecção o livro Estados Novos, Estado Novo) e da Universidade. Foi director da Revista de História das Ideias e da revista Estudos do Século XX, do CEIS20, de que foi um dos fundadores.
 

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