Nota: versão provisória desta conferência, que será complementada,
logo que possível, com as ligações para todos os filmes indicados.
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À Confraria da
Lampreia de Penacova, no seu X Capítulo, ofereço este prato mal cozinhado, que
serve como receita para o modesto aperitivo que vou servir e que só pode ser
salvo com o extraordinário banquete d’A Festa de Babette.
Com amizade
Penacova, 6 de
Abril de 2013
É um equívoco eu vir aqui
proferir uma conferência (ou uma “oração de sapiência”, como honrosamente lhe
chamou o programa) sobre este tema, não sendo gastrónomo ou “gastrósofo” (e sim
apenas apreciador de boa comida e de boa bebida, embora em certas
circunstâncias e em quantidade cada vez menor, o que abona, de resto, em favor
da verdadeira gastronomia) e não sendo especialista em cinema (sou apenas um
historiador que analisou o “cinema sob o olhar de Salazar” e que, quando muito,
se pode chamar um “cinéfilo”, termo de que Alves Costa, um dos iniciadores do
ensaísmo cinematográfico em Portugal, parece não ter gostado, por se ter
tornado um termo demasiado corrente).
Falar deste tema, em sentido
lato, é também um equívoco, pois consiste afinal em falar de quase todo o
cinema, dado que não há praticamente nenhum filme onde não haja uma cena
passada à mesa. O comer e o beber fazem parte integrante da vida, como o amor, o
prazer, o sofrimento ou a morte.
Se olharmos para o cinema
português de anos idos, todos nos lembramos das pitorescas cenas passadas à
mesa nas pensões familiares lisboetas ou nas casas de família, como sucede, por
exemplo, em O Pai Tirano (1941), de
António Lopes Ribeiro. Por vezes essas cenas têm algo de caricato e de
humorístico, como acontece, no mesmo filme, com o caso, reproduzido
recentemente num anúncio da TV, da criada Teresa (Teresa Gomes) que substituía
um bolinho de bacalhau e vários outros petiscos, que não havia no bar, por um
copinho de vinho branco (ou um copinho de aguardente? — já não me lembro bem).
Cenas excelentes passadas em
restaurantes ou em festas de sociedade ou em refeições íntimas encontramo-las
nós em Manoel de Oliveira (por exemplo, em Vale
Abraão, 1993, em Party, 1996, ou
em Belle Toujours, 2006). Mas atinge
foros de ironia sarcástica no filme Tráfico.
Uma comédia Portuguesa (1998), de João
Botelho, em que os vigaristas penetram em dada altura numa “sardinhada
de sociedade”, à beira de uma piscina,
onde os convivas, vestidos de cerimónia e servidos por “criados” trajados a
rigor, comem duas ou três sardinhas com luvas brancas, que lhe são distribuídas
à entrada. Ou então na ironia crítica, paradoxal e desconcertante de João César
Monteiro, das Bodas de Deus (1999),
um dos filmes da trilogia de João de Deus, em que este, após salvar de morrer
afogada uma jovem (Joana), que tentara suicidar-se, e de ter recebido de um
anjo (interpretado por Luís Miguel Cintra), vestido de oficial da marinha, uma
mala cheia de dinheiro, almoça com a madre-superiora, no convento onde entregara
a jovem. Aí surge, inesperadamente, o gosto pela fartura e a austeridade de
João de Deus, que enche o prato de um cozido à portuguesa, de “comer e chorar
por mais”, o qual acaba por ser levantado da mesa sem nada ter comido, ao mesmo
tempo que a madre-superiora comia alguma coisa e depois fumava cigarrilhas
longas, ambos vituperando os fascistas, com uma blasfémia (a freira) ou com uma
ladainha pornográfica (João de Deus).
Notáveis são também as comezainas
dos filmes do realizador e músico sérvio Emir Kusturica: a boda de casamento no
subterrâneo, onde se escondiam da guerra sem saber que a guerra tinha
terminado, em Underground (1995), ou
nos encontros de convívio e de luta de famílias, em Gato Preto, Gato Branco (1998), que representam afinal as polémicas
constantes dos países balcânicos. Ou então as refeições nojentas em que cada um
quer comer mais ou até matar o outro, de Ettore Scola, em Feios, Porcos e Maus (1976). Mas Ettore Scola fez mesmo um filme
sobre um jantar (La Cena, 1998),
passado num restaurante, onde os dramas de cozinheiros, criados e clientes
representam afinal os dramas do dia-a-dia. Aqui a comida e a bebida, ou o acto
de comer e de beber, ou de cozinhar ou de servir à mesa, mas sobretudo o
ambiente que os rodeia, são apresentados como uma grande metáfora. Tal como é
uma alegoria, neste caso contra as prepotências, a peça de Arnold Wesker, A Cozinha, The Kitchen (1957), que representa a exploração do operário na
sociedade capitalista, peça proibida em Portugal no Salazarismo e só encenada
em 1971, tendo sido de novo levada ao palco recentemente, por Carlos Avilez.
Até certo ponto será também uma
metáfora a história de uma comunidade de pobres emigrantes do norte de África
em França (Sète) que querem abrir um restaurante num barco, mas tudo lhes corre
mal, entre vários dramas familiares. Trata-se do filme francês do tunisino
Abdel Kachiche, La Graine et le Mulet,
apresentado em Portugal com o nome de O
segredo de um Cuscuz (2007).
Grande jogo de representações é o
polémico filme do polémico realizador Marco Ferreri, A Grande Farra (1973) — é afinal o olhar amargo sobre a sociedade
capitalista e de abundância, que se suicida num acto autofágico (comendo
grandes iguarias), com a presença não de marginais prostitutas, mas de uma
professora de crianças, representante do stablichment, a qual, com os
seus alunos, visitava a casa de Balzac, situada ao lado do palacete onde toda a
cena se desenvolve. De algum modo como Os
Canibais (1988), filme de Manoel de Oliveira, apresentado em tom de ópera,
com música de João Peres, baseado no conto com o mesmo nome (1868) de um autor
maldito do século XIX, Álvaro Carvalhais, que põe a nu a imoralidade da
sociedade burguesa, a qual come os seus próprios filhos. Algo de semelhante
surge no filme Delikatessen (1991),
de Jean-Pierre Jeunet, em que, numa sociedade surrealista, onde falta comida e
todos se querem comer, a carne humana é apresentada como um excelente
ingrediente de óptimos petiscos.
Mas este canibalismo — recorde-se
ainda Hannibal (2001), interpretado
por Anthony Hopkins, e realizado por Ridley Scott, thriller que vem na sequência do mais conhecido e, a meu ver, de
menor qualidade, O Silêncio dos Inocentes
— ou o suicídio pela comida são tudo o que há de mais oposto à gastronomia
e peço, por isso, desculpa por ter referido semelhantes filmes de maior ou
menor interesse cinematográfico, do ponto de vista estético, dramático e
social.
Nem nesse sentido se pode colocar
a obra didáctica e positiva, filme para crianças e adultos, quase em desenhos
animados, de Tim Burton, com o seu actor preferido, Johnny Depp, Charlie e a Fábrica de Chocolates
(2005). Nem mesmo Ratatui ou Ratatouille (2007), nome da principal
figura e de um prato campestre da Provença, das americanas Produções Pixar e
realizado por Brad Bird — delicioso filme de animação sobre as aventuras de um
rato cozinheiro em Paris.
Na verdade, já se aproxima mais
da gastronomia outro filme americano, que vai olhando para a gastronomia
francesa (como é comum, por ser, talvez injustamente, a mais conhecida e,
afinal, a mais elaborada), Julia e Julie
(2009), de Nora Ephron, baseado na autobiografia de Júlia Child (My life in France), interpretada por
Meryl Streep, que conta a história de uma jovem desempregada, Julie, que se
propôs cozinhar centenas de receitas do livro Mastering the Art of French Cooking, registando as suas impressões
sobre o que vai cozinhando num blogue
de grande sucesso.
Também não será obra ligada com
exactidão à gastronomia, ou, melhor, à enologia, o filme Sideways (USA, 2004), de Alexander Payne, história de dois amigos
que saem em despedida de solteiro de um deles, em busca das caves de vinho da
Califórnia. Pretende-se criticar nele o pretensiosismo do gosto pelo vinho nos
Estados Unidos. No final das várias peripécias humorísticas e dramáticas dos
dois amigos, um deles, divorciado e com problemas existenciais, acaba,
tristemente, a beber um vinho que se pretendia de qualidade excepcional, num
restaurante fast-food, em copo de
plástico. A atracção americana pelo vinho é um facto interessante, de tal modo
que levou à produção de algumas obras curiosas, como alguns livros de
jornalistas e de enólogos, mesmo alguns sobre a história de França na Segunda
Grande Guerra (Don e Petie Kladstrup, Vinho e Guerra. Os franceses, os nazistas e a batalha pelo maior tesouro
da França. Edição brasileira. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002). No domínio do documentário,
recorde-se o filme premiado Mondovino
(2004), do americano Jonathan Nossiter, que é uma crítica à globalização e ao
emprego de técnicas modernas em função de uma “estandardização”, um paladar
homogéneo, ao gosto do público, em desfavor do terroir e da utilização original das pipas de carvalho. Teria esse
tipo de documentários críticos sobre a sociedade actual, em crise de valores,
grande sucesso, entre cinéfilos e não só, como provam os filmes sobre outros
temas de Michael Moore e o recente Inside
Job, A Verdade da Crise (2010),
de Charles H. Ferguson.
Verdadeiramente, um filme que
aborda a gastronomia, ou a gastrosofia, ou a gastrologia, ou a gastrofilia —
não sei qual o termo mais adequado —, não será ainda a notável fita mexicano Como Água para Chocolate (1992), de
Alfonso Arau, com base no livro de Laura Esquível. Obra de um realismo mágico,
entre o sobrenatural e o real, passa-se durante a guerra civil e tem como
pretexto a cozinha e as suas receitas (cada capítulo do livro começa por uma),
onde Tita — marcada para ser a solteira da família — se fixa num amor fatal por
Pedro, começando por atraí-lo pela boa comida.
É interessante como o chocolate
tem funcionado como motivação de filmes e de livros, mesmo de uma obra que só
de forma muita indirecta poderia trazer ao de leve referências gastronómicas (o
caso de um gelado), Morango e Chocolate
(1994), o filme cubano/mexicano/espanhol, de Tomás Gutierrez Alea e Juan Carlos
Tabió, de considerações críticas sobre a realidade cubana e uma apologia da
tolerância, marcada pela amizade entre um professor e um intelectual homossexual.
E é sobre a arte de fazer chocolate que versa um filme que já poderei apelidar,
esse sim, de gastronómico — Chocolate
(2000). Inglês, mas dirigido pelo sueco Lars Hallström, é revelador de uma
temática muito sugestiva abordada anos antes num filme de culto (pelo menos
para mim) a que me vou especialmente referir — a relação entre o prazer e a
vida, uma relação que demonstra que o prazer é capaz de romper preconceitos,
neste caso os preconceitos da nobreza e do clero, num pequeno povoado francês.
É a história de Vianne Rocher (Juliette Binoche), e da sua filha, que, com a
sua chocolateria, vai conquistando a alma das gentes simples e o amor de um
cigano, sendo inicialmente perseguida pelo conde, dominador das gentes da
aldeia, e pelo jovem padre, seu apaniguado. Considerado um filme de grande
nível cinematográfico, teve vários óscares e globos de ouro.
Mas autenticamente obra de
eleição e gastronómica por excelência é o filme dinamarquês, considerado então
o melhor filme estrangeiro do Festival de Cannes, A Festa de Babette (1987). Dirigido por Gabriel Axel, teve como
base o romance de Karen Blixen (que inspirou também o filme África Minha), conhecida igualmente pelo
pseudónimo de Isak Dinesen. Babette, que fugira das convulsões da Comuna de
Paris (1871) e que (segundo se vem a saber no fim) fora chef de cuisine do Café
Anglais, vai para uma pequena aldeia nórdica, onde é albergada por duas
mulheres, filhas do pastor de uma comunidade presbiteriana muito austera.
Só um verdadeiro dinner français que se propõe cozinhar e servir, por ter ganho a lotaria e em homenagem póstuma ao pastor, quando ele faria 100 anos, traz verdadeira felicidade à comunidade. É uma união entre o prazer e a vida, ou a ideia que não há espiritualidade sem o prazer, ou que o artista nunca é pobre e pode sempre dar algo de si aos outros. Mesmo que seja uma cozinheira, uma cozinheira de primeira água, que fizera feliz e voltara a fazer feliz um militar, o único dos convivas que sabia reconhecer os prazeres da mesa, mas que também conhecera o amor, nunca concretizado mas sempre vivo, por uma das anfitriãs. Os outros passaram a apreciar o gosto da boa comida e só então terão percebido o sentido da felicidade e da solidariedade. O Espírito não pode existir sem a Matéria, desde que esta seja um “Matéria espiritual”, um objecto de arte.
Só um verdadeiro dinner français que se propõe cozinhar e servir, por ter ganho a lotaria e em homenagem póstuma ao pastor, quando ele faria 100 anos, traz verdadeira felicidade à comunidade. É uma união entre o prazer e a vida, ou a ideia que não há espiritualidade sem o prazer, ou que o artista nunca é pobre e pode sempre dar algo de si aos outros. Mesmo que seja uma cozinheira, uma cozinheira de primeira água, que fizera feliz e voltara a fazer feliz um militar, o único dos convivas que sabia reconhecer os prazeres da mesa, mas que também conhecera o amor, nunca concretizado mas sempre vivo, por uma das anfitriãs. Os outros passaram a apreciar o gosto da boa comida e só então terão percebido o sentido da felicidade e da solidariedade. O Espírito não pode existir sem a Matéria, desde que esta seja um “Matéria espiritual”, um objecto de arte.
Deste modo, pode dizer-se que
nada há como ver o banquete da Festa de
Babette para se entender o sentido de uma confraria gastronómica, que deve
ser considerada no seu sentido preciso e literal — uma confraria, um conjunto de “irmãos” que se juntam para comer e
beber, como nas antigas confrarias medievais, junção entre a vida e a morte,
onde era obrigatório pelo menos uma refeição conjunta por ano, um convivium, em que para representar e se
afirmar essa relação vital se passava um copo de mão em mão. Assim se ligavam
espiritualmente todos os confrades e aqueles que já haviam falecido.
É este filme ou, melhor, o seu
final, a notável e deliciosa cena do banquete, nunca mais esquecida depois de a
ver, que ofereço à Confraria da Lampreia de Penacova, no seu X Capítulo.
[i] Professor Catedrático
aposentado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Licenciou-se aqui
com uma tese sobre o Tradicionalismo e a Contra-Revolução, publicada em 1973.
Doutorou-se em 1978 com a dissertação Ideologia política e teoria de Estado na
Restauração, publicada em 1981-1982. Depois dessa passagem pelo estudo da Época
Moderna, dedicou-se ao estudo da História da História, do Estado Novo (foi
publicada nesta colecção o livro Estados Novos, Estado Novo) e da Universidade.
Foi director da Revista de História das Ideias e da revista Estudos do Século
XX, do CEIS20, de que foi um dos fundadores.
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